
A presente Constituição da República Federativa do Brasil traz, no mínimo, quatro usos explícitos do interesse nacional: perde a nacionalidade brasileira o naturalizado que perpetrar atividade a ele nociva; se relevante, permite à União instituir empréstimos compulsórios; se obedecido, permite à União conceder à exploração por terceiros os recursos minerais e potenciais de energia hidráulica; e precisa ser observado na disciplina dos investimentos estrangeiros no Brasil. No entanto, nem a Carta Magna nem leis específicas, mesmo aquelas voltadas à regulamentação dos assuntos constitucionais em tela, definem em seu corpo que seja o interesse nacional e qual é o seu conteúdo, definidos para cada quadra da História brasileira.
As lições acadêmicas nos indicam que o interesse nacional sucedeu o interesse dinástico, ou do Príncipe, próprio das monarquias absolutistas que, a seu tempo, foram sucedidas pela construção de Estados democráticos. A organização da espécie humana em Nações independentes, de acordo com a identidade geográfica e cultural dos diversos grupamentos que se iam livrando da dominação real despótica, trouxe à relação entre os povos a necessidade de se observar o interesse de cada um em relação aos demais, em especial os de vizinhança mais próxima.
Adicionalmente, o conceito de interesse nacional ganhou acepção também interna às comunidades, como aquele que não é de grupos ou setores, não é de governo nem de particulares, mas de toda a Nação, da sociedade nacional por inteira. À ausência de norma precisa, porém, muitas vezes o termo é invocado indevidamente, como justificativa para atos públicos que se quer fazer parecer do interesse de todos, mas que na verdade atendem a objetivos de grupos interessados em fazer valer os seus próprios e egoístas interesses, em prejuízo de outrem.
Os longos anos da era contemporânea fizeram consolidar três vertentes de pensamento sobre o assunto. A primeira, objetivista, tem seu fundamento em Henry Morghentau, cidadão estadunidense de origem alemã. Acreditava ele que o interesse nacional é aquilo que o poder acumulado permite a uma Nação fazer, independentemente do que outros possam pensar a respeito. Por exemplo, assegurar a esfera política de influência e o livre comércio internacionais do país a que servia. Base ao modo de relacionamento internacional conhecido como “realismo político”, não considerava eventual vontade alheia de não se integrar ao rol de Nações hegemonizadas pelos Estados Unidos da América. Em contraposição, a corrente subjetivista, da qual Woodrow Wilson foi um dos fundadores, preconiza que a vontade do povo é a razão suprema da expressão do interesse nacional. A intensidade dos conflitos ocorridos na Segunda Guerra Mundial fez essa linha de pensamento ser praticamente abandonada, vez que pouco efeito prático teve então a vontade de viver-se bem e em paz da maioria dos cidadãos, em especial na Europa.
Um terceiro caminho, que conta com a simpatia deste autor, determina que o mais relevante não são os interesses em si, mas a existência de um mecanismo estável e democrático para construí-los enquanto nacionais. O método adotado permite ao povo expressar a sua vontade e, ao mesmo tempo, impõe limites ao relacionamento internacional do país, considerando igual direito à boa existência das outras organizações nacionais da espécie humana.
No Brasil recente, imperou o modelo objetivista no período de ausência de normalidade democrática que sucedeu ao rompimento da ordem institucional em 1964. A concepção de interesse nacional baseada no poder acumulado foi gradualmente alterada entre a anistia de 1979 e a promulgação da Constituição de 1988, quando a terceira via ganhou hegemonia entre nós.
Compartilhando as lições do doutor em Ciências Sociais Alexandre Motonaga, sabe-se que se uma Constituição repu- blicana é elaborada de forma democrática, ela traz implícita a vontade do povo e os elementos necessários à definição do interesse nacional do país que rege, válido para todo o período de sua vigência. Do próprio texto, é possível extrair os interesses permanentes, que espelham a própria razão de existir do Estado democrático de direito, e outros aspectos, mutáveis ao longo do tempo.
A combinação da leitura atenta da Lei Maior brasileira com os preceitos que rapidamente elencamos neste artigo permite afirmar que são interesses nacionais vitais, no Brasil, a sua integridade territorial, a identidade cultural do povo brasileiro, o desenvolvimento econômico e social do país e a promoção do bem-estar de todos. São também interesses nacionais a redução das desigualdades regionais e sociais, o desenvolvimento da ciência e da técnica nacionais, a promoção do trabalho e livre iniciativa nacionais e a oferta indistinta de serviços públicos de educação e seguridade social; nas relações internacionais, a defesa e a promoção dos seus interesses dar-se-ão segundo os princípios elencados no parágrafo 4º da Constituição da República Federativa do Brasil, com especial atenção à independência nacional, igualdade entre Estados, não intervenção e cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, os quais se espera reciprocidade dos Estados estrangeiros.
A defesa e a promoção desses interesses só podem ser feitas pela sociedade se estruturada em Estado democrático nacional. O papel organizador, fiscalizador e repressor estatal tem o condão de, diretamente ou com a participação de setores da sociedade e de particulares, conduzir a Nação ao seu desenvolvimento e ao bem-estar generalizado dos cidadãos, coibindo práticas antissociais, de nacionais e estrangeiros, se prejudiciais ao interesse nacional, da mesma forma que se espera no caso de medidas nocivas aos direitos individuais e coletivos.
O cumprimento do dever estatal para com a cidadania brasileira passa, sem prejuízo de outros elementos, pela subordinação dos interesses privados aos nacionais; a escolha autóctone do modelo de desenvolvimento do país, procurando neutralizar as condicionantes externas; a formação de capital necessária para a suficiência dos investimentos públicos e privados no incremento contí- nuo da capacidade potencial de produção; e a distribuição de renda, permitindo a cada um e a todos uma existência confortável e plena de humanidade.
Como ilustração do que aqui pontuamos, tomemos o Sistema Financeiro Nacional de exemplo. O interesse nacional que se espera ver atendido por este setor econômico está expresso no artigo 192 da Constituição Federal: sua estruturação deve ser voltada à promoção do desenvolvimento equilibrado do país e atendimento das necessidades da coletividade. Portanto, o Estado, por meio do Banco Central do Brasil, deve organizá-lo, regulá-lo e fiscalizá-lo para que cumpra o papel que dele a sociedade espera.
Traduzindo o nosso exemplo em termos quantitativos, o Sistema Financeiro Nacional aplica em operações de crédi- to a metade dos R$ 8 trilhões que nele circulam e aloca um pouco menos do que isso nas atividades de curto prazo de tesouraria – compra e venda de títulos e valores mobiliários e operações com derivativos –, com base nas informações disponíveis em 31 de dezembro de 2015. Para que o crédito bancário aportasse ao crescimento da economia brasileira montante proporcional ao que existe na China, país que cresce a ritmo três vezes superior ao Brasil, com inflação menor que o piso da meta nacional, este precisaria ser ampliado em cerca de R$ 3 trilhões, ou 75% do patamar presente.
O melhor aproveitamento dos recursos circulantes nas instituições financeiras em favor do desenvolvimento nacional exige à autoridade monetária o incentivo e, em alguma medida, a determinação de a atividade de intermediação financeira ser direcionada crescentemente ao crédito de longo prazo, que merece ser ofertado em linha com um plano estatal de desenvolvimento, que favoreça os interesses nacionais fixados em lei.
Entre medidas que podem ser estudadas, a exigência de capital adicional para o exercício da atividade financeira de curto prazo, mesmo que atenuada pelo direcionamento de crédito a setores econômicos escolhidos, pode ter o condão de migrar os recursos dos depositantes a serviço dos interesses da Nação.
As três tarefas necessárias ao atendimento do interesse nacional – marco legal, planejamento estatal e medidas de incentivo e enquadramento concreto de capitais, tanto financeiros como produtivos – demandam longos e detalha- dos estudos para que o nacional prevaleça sobre o particular. É um longo caminho que merece ser trilhado desde já pelo Brasil. O urgente é a decisão de fazê-lo. Se, por um lado, exige esforço de todos, por outro, é ao bem de todos que se destina.
Publicado originalmente na Por Sinal nº 52, de setembro de 2016.
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