
Prefácio de Nilson Araújo de Souza ao livro O dinheiro, sua história e a acumulação financeira, de Iso Sendacz.
A obra acompanha o curso homônimo, ministrado em 2020 na Escola Nacional de Formação da CTB.
O texto “O dinheiro, sua história e a acumulação financeira” é a cara de seu autor, o engenheiro Iso Sendacz. Formado pela USP de São Carlos, fez carreira no Banco Central, por onde se aposentou. Simultaneamente, tinha uma militância política intensa. O texto é fruto da combinação dessas duas esferas de ação.
Aposentado, ele não pendurou as chuteiras. Seguiu estudando, sozinho ou em grupos de estudos, a Economia Política de Marx e a trajetória do desenvolvimento e subdesenvolvimento brasileiro. E resolveu registrar neste livro a combinação do seu anterior conhecimento e experiência com esse aprendizado mais recente.
Aliás, enxerga seu conhecimento e experiência à luz desse novo aprendizado. Não foi à toa que a escolha do tema recaiu sobre o dinheiro, em que está presente sua experiência no Banco Central, esta vista sob o prisma desse novo aprendizado.
O objetivo de Iso Sendacz com este texto é compreender o sistema financeiro brasileiro atual inspirando-se no conhecimento que amadureceu nesse período mais recente. Para isso, como o dinheiro é a célula mater do sistema financeiro, o livro dedica-se a examinar a sua trajetória histórica e a conjecturar sobre seu futuro.
Para examinar o significado e o papel do dinheiro, ele começa pesquisando como nasceu essa “instituição”. E é assim que vai lá na origem, o momento em que nasce o embrião da mercadoria por meio da troca de produtos entre comunidades ancestrais, designadas por Marx de comunismo primitivo.
Mas o dinheiro propriamente dito só se universaliza quando igualmente se universaliza o modo de produção de mercadorias, ou seja, o capitalismo, já que é nesse momento que o dinheiro cumpre de maneira mais límpida seu papel de equivalente geral, além das quatro funções a ele atribuídas: unidade de conta, isto é, expressão do valor das mercadorias, meio de troca, reserva de valor (poupança) e meio de pagamento (crédito).
Mas em determinado momento o dinheiro deixa de ser apenas isso para condensar a riqueza, mais propriamente a riqueza capitalista, funcionando então como capital. Iso constata que o dinheiro, que nasceu da mercadoria, torna-se ele próprio uma mercadoria, sendo cotado no mercado. O dinheiro, por si só, não é capital. Só se transmuta em capital quando, nas mãos do capitalista, é utilizado para render lucros.
É quando ocorre a mudança da fórmula M-D-M – que operava na produção mercantil simples, nascida no bojo do longo período de decadência do feudalismo e continuou sob o capitalismo – em D-M-D’, que é a fórmula típica do capitalismo, ou seja, o sujeito tem D (dinheiro), compra M (mercadoria) e a vende por D’ (dinheiro acrescido do lucro), sendo que esse M corresponde às mercadorias força de trabalho – que é a verdadeira produtora do valor ´- e meios de produção.
Na fase imperialista, o dinheiro-capital é exportado pelos países desenvolvidos, na busca de mercados e de força de trabalho e matérias primas baratas. Movimentando-se inicialmente, em nível internacional, sob as formas de empréstimo e investimento, assumiu recentemente mais claramente a cara do capital fictício, especulativo, que circula pelo mundo literalmente à velocidade da luz.
Conforme Iso reforça com dados, são massas gigantescas de capitais que se descolaram da produção e circulam na esfera puramente financeiro-especulativa, ainda que se alimente de valor gerado na esfera produtiva. É um capital estéril que sangra o valor gerado na produção e limita, portanto, a capacidade de acumulação de capital e, portanto, de crescimento da economia.
A exportação de capitais, sob essas várias formas, dos países desenvolvidos para os países subdesenvolvidos reforça a dependência destes em relação ao centro do imperialismo, aumentando a sangria de valor gerado e, por conseguinte, comprometendo a superação do subdesenvolvimento. A luta contra o subdesenvolvimento é, portanto, a mesma luta para romper com a dependência ao sistema imperialista.
É à luz desses elementos que Iso estuda o sistema financeiro, revelando como funciona atualmente, particularmente numa economia dependente como a brasileira. É aí que examina as instituições financeiras, o crédito, o mercado de capitais, a dívida pública.
No último capítulo, examina a política monetária brasileira atual. De corte neoliberal, ela se baseia no chamado tripé macroeconômico. O governo, através do Conselho Monetário Nacional, estabelece uma meta de inflação, entregando ao Banco Central a tarefa de fazê-la cumprir.
E o BC procura cumprir essa tarefa por meio do Copom – Comitê de Política Monetária (que reúne os diretores do banco a cada 45 dias para definir a taxa básica de juros, a famosa Selic) e o principal instrumento, senão o único, que o BC utiliza é o preço do dinheiro, isto é, a taxa de juros. Como costumam escolher uma meta de inflação inferior à inflação corrente, o Banco Central, para fazer essa inflação convergir para a meta, pratica uma política de juros básicos altos, elevando ou mantendo elevada a taxa Selic.
Isso acarreta três consequências principais: onera o Tesouro nacional, encarece o custo do crédito para o setor privado e atrai capitais especulativos externos.
Ao onerar o Tesouro, compromete a capacidade estatal de investimento e de geração de bem-estar. Ao encarecer o custo do crédito, desanima as empresas produtivas de tomar empréstimos para investir; ao contrário, elas usam seus excedentes para aplicar no mercado financeiro. Resultado? Estagnação da economia.
Quando atrai capitais especulativos externos, valoriza a moeda nacional, tornando o produto importado mais barato nos termos dessa moeda. Tal mecanismo, somado ao elevado grau de abertura comercial, provocado pela redução ou mesmo eliminação de tarifas de importação, barateia a mercadoria importada, engendrando uma concorrência desleal com a produção nacional, sendo o principal responsável pela desindustrialização do país: a produção da indústria de transformação, que chegou a beirar os 30% do PIB na década de 1980, hoje mal chega a 10%.
Na conclusão, Iso, inspirando-se numa consigna que enxergou na bandeira de proa da nave Enterprise, comandada pelo terráqueo Picard, da série Jornada nas Estrelas – de cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade -, imagina um futuro sem dinheiro.
Isso não é uma mera ficção. Já ocorreu na realidade. Na imensa maioria de seu tempo de existência enquanto homo sapiens (mais de 95%), a humanidade viveu sem dinheiro. Por que? Não era apenas pelo seu baixo nível tecnológico, mas, sobretudo, porque a população vivia comunitariamente e tudo o que produzia ou coletava era distribuído entre os membros da comunidade de acordo com as necessidades. Daí Marx haver designado esse período de comunismo primitivo.
O dinheiro, irmão siamês da mercadoria, só começou a se generalizar com o surgimento da propriedade privada e da divisão social do trabalho e só se desenvolveu plenamente em todas as suas funções com o advento do capitalismo, fenômeno de consolidação recente na história humana (cerca de quatro séculos).
Antes, havia mercadoria e dinheiro, mas tanto no período escravista como no feudal a imensa maioria da produção era para o autoconsumo da fazenda escravista ou do feudo, não se transformando em mercadoria, e, portanto, não havia necessidade de dinheiro. O dinheiro era usado basicamente para remunerar os soldados.
Mas, como Iso fala de um futuro sem dinheiro, examinemos essa possiblidade. Já vimos que por milhares de anos as comunidades originárias viveram sem dinheiro e que nos períodos escravista e feudal praticamente não havia dinheiro, a não ser no período de desagregação do feudalismo e transição para o capitalismo. O tempo de vigência plena do dinheiro está, portanto, restrito ao período do capitalismo – portanto, irrisórios 2% do tempo de existência do homo sapiens.
Ora, se esse fenômeno da ausência do dinheiro já ocorreu no passado ancestral, nada impede que, com elevado grau de desenvolvimento, volte a ocorrer no futuro, ainda que de forma modificada e por razões que, ainda que diferentes na forma, são semelhantes na essência.
Poderia abrir mão do dinheiro uma sociedade em que, pelo espetacular aumento da produtividade do trabalho com base nas técnicas mais avançadas (boa parte das quais já existem hoje) e com fundamento na propriedade comum dos meios utilizados para produzir, guiada por um plano, cada cidadão ou cidadã, independente da sua contribuição para a produção, receberia de acordo com suas necessidades.
É importante registrar que antes desse reino da abundância haveria uma etapa histórica, que Marx designou de primeira fase do comunismo e hoje conhecemos como socialismo, que, por acabar de emergir do capitalismo, ainda tem que lidar com elementos mercantis, herdados ou recriados, mas que vão progressivamente reduzindo seu raio de ação como regulador da economia, enquanto cresceria o papel do plano. Portanto, ainda havia espaço para a mercadoria e, por conseguinte, para o dinheiro.
Nessa etapa, cada um contribuiria com a produção social de acordo com sua capacidade e seria retribuído conforme seu trabalho, ou seja, de acordo com sua contribuição. Vale o registro de que, durante a experiência soviética, concluiu-se que o socialismo não seria apenas a primeira fase do comunismo, mas um modo de produção com leis próprias.
Esse processo, que conduz à extinção da moeda, não é uma ficção de Jornada nas Estrelas. Tem fundamentação cientifica. Marx, ao descobrir as leis gerais que movem a sociedade capitalista, fundamentou cientificamente os desejos idealistas dos socialistas utópicos (Saint-Simon, Charles Fourier, Robert Owen…), demonstrando a inevitabilidade histórica de uma formação econômico-social superior e mais justa.
Marx, em seus incontáveis estudos, nas áreas de filosofia, economia, política, antropologia, direito, inclusive ciências da natureza, como a Biologia, chegou à conclusão de que o mundo se organizará assim no futuro como resultado das próprias contradições do capitalismo. Examinando as entranhas desse sistema, percebeu que, das suas contradições, nasceria uma sociedade nova.
Constatou que, nesse sistema, existe uma tendência à socialização crescente das forças produtivas, ao integrar cada vez mais as distintas unidades de produção em distintas regiões, unidades de produção que se agigantaram a partir da grande depressão do último quartel do século XIX, e que em algum momento entrarão em choque com as relações de produção, cuja essência é condicionada pela privatização, expressa em um capital crescentemente concentrado.
Esse choque engendraria um período de crises, o que faria as contradições emergirem na superfície, tornando-as mais acessíveis ao conhecimento, não mais apenas pelos cientistas e os setores de vanguarda, mas também pelas amplas massas do povo. Isso criaria as condições para que os seres humanos que vivem do próprio trabalho, havendo tomado consciência das contradições que teriam levado a essa irrupção, lutem não apenas por sua própria emancipação, mas pela de todos os seres humanos.
E assim começariam a construir uma nova sociedade que tornaria os meios de produção patrimônio comum dos seus membros, cujo desenvolvimento conduziria a uma situação em que cada um contribuiria para a produção de acordo com sua capacidade e dela receberia de acordo com sua necessidade. Ou, como consta da bandeira de proa da nave espacial Enterprise, comandada pelo terráqueo Picard: “De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade”.
Seria a repetição no futuro da forma de organização social do comunismo primitivo, só que convertendo o termo primitivo em desenvolvido; numa situação em que todos serão coletivamente os donos da propriedade comum, não há necessidade de dinheiro. Na primeira fase, as famílias receberão meios de consumo equivalentes à sua contribuição ao processo de produção ou, quando amadurecer a consciência coletiva, ao tempo em que ocorra o avanço da tecnologia e da produtividade do trabalho, de acordo com a necessidade.
Numa sociedade assim, o dinheiro tende a desaparecer com o desaparecimento da mercadoria. Como assim? Um produto só é mercadoria se produzido para outrem e chega às suas mãos por meio de um processo de troca. Inicialmente, era troca de produto por produto, o chamado escambo, mas que, com o desenvolvimento da humanidade, passou a ocorrer por meio do dinheiro, nascido nesse mesmo processo que engendrou a mercadoria. Numa sociedade em que a propriedade é comum e, consequentemente, a produção é coletiva, o resultado da produção é distribuído aos membros da sociedade de acordo com sua necessidade. E adeus dinheiro.

Nilson Araújo de Souza é Doutor em Economia pela Universidad Nacional Autónoma de Mexico (UNAM), com pós-doutoramento em Economia pela USP; professor do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (ICAL), Unila; autor de vários livros, artigos e ensaios sobre Economia brasileira, Economia latino-americana e Economia mundial. Destacam-se os livros “Economia brasileira contemporânea: de Getulio a Lula” e “Economia internacional contemporânea – da grande depressão de 1929 ao colapso financeiro de 2008”; Diretor do Instituto Claudio Campos e da Fundação Mauricio Grabois; presidente do Sindicato dos Escritores de São Paulo.
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11 comentários em “Nas pegadas do dinheiro. Adeus dinheiro!”