Paz e Guerra, um conto bem brasileiro de Moacyr Scliar

O portal Conto Brasileiro traz muitas obras aos leitores, dentre elas Paz e Guerra, do imortal médico, professor e escritor Moacyr Scliar, um dos doze brasileiros mais lidos no exterior. Veja a história:

Eu estava atrasado para a guerra; tive de tomar um táxi. Uma contrariedade: com o recente aumento do preço da corrida, aquilo era uma despesa imprevista e inoportuna, um abalo em meu orçamento. Contudo, cheguei justo a tempo de marcar o ponto, evitando assim transtornos maiores. A fila junto ao relógio de ponto era grande: eu não era o único retardatário. Ali estava o Walter, meu colega de trincheira, resmungando: também ele tivera de tomar um táxi. Éramos vizinhos e tínhamos entrado na guerra quase ao mesmo tempo. Na segunda quinta-feira de cada mês tomávamos o ônibus na esquina de nossa rua, para participar nas ações bélicas.

Estou farto deste negócio, disse Walter. Eu também, respondi. Suspirando, batemos o ponto e nos dirigimos ao barracão da intendência, onde estava instalado, provisoriamente (mas isso há mais de quinze anos), o vestiário. Atrasados, hoje? — perguntou o rapazinho que tomava conta do vestiário. Não respondemos. Recebemos as chaves dos nossos armários. Rapidamente trocamos de roupa, vestindo nossos velhos uniformes de campanha; apanhamos os fuzis e a munição (vinte cartuchos) e nos dirigimos para a linha de combate.

O conflito bélico tinha como cenário um descampado nos arredores da cidade. O campo de batalha estava cercado por uma cerca de arame farpado com tabuletas: Guerra, afaste-se. Advertência desnecessária: pouca gente vinha ali, àquele local de bucólicas chácaras e sítios.

Nós, os soldados, ocupávamos uma trincheira de cerca de dois quilômetros de extensão. O inimigo, que nunca víamos, estava a cerca de um quilômetro, também entrincheirado. O solo, entre as duas trincheiras, estava juncado de destroços: blindados e tanques destruídos misturavam-se a ossadas de cavalos, recordando um tempo em que a luta havia sido feroz. Agora o conflito tinha entrado em sua fase estável — de manutenção, nas palavras do nosso comandante. Combates não mais ocorriam. A única recomendação que nos faziam era não sair da trincheira. Um problema, para mim: meu filho menor queria uma cápsula vazia de obus, que eu não tinha como conseguir. O garoto reclamava; eu nada podia fazer.

Descemos para a trincheira, Walter e eu. O lugar não era de todo desconfortável. Tínhamos mesas, cadeiras, um pequeno fogão, utensílios de cozinha, sem falar num aparelho de som e uma TV portátil. Propus a Walter um joguinho de cartas. Depois, ele disse. Examinava seu fuzil com testa franzida e ar de desgosto: esta porcaria não funciona mais, sentenciou. Ora, eu disse, tem mais de quinze anos, já deu o que tinha que dar. E ofereci-lhe minha arma: não pretendia disparar tiro nenhum. Naquele momento ouviu-se um estampido e o silvo de uma bala sobre nossas cabeças. Essa passou perto, eu disse. Esses idiotas, resmungou Walter, um dia vão acabar ferindo alguém. Pegou minha arma, pôs-se de pé e deu dois tiros para o ar. Que lhes sirva de advertência, bradou, e tornou a se sentar. Um servente apareceu, com um telefone sem fio: sua esposa, seu Walter. Mas que diabo, exclamou ele, nem aqui essa mulher me deixa em paz. Pegou o telefone:

– Alô! Sim, sou eu. Estou bem. Claro que estou bem…

Para saber o fim da história, clique aqui. E tem mais do autor na página, entre eles Zap, No restaurante submarino e O bebê do milênio.

Publicado por Iso Sendacz

Engenheiro Mecânico pela EESC-USP, Especialista aposentado do Banco Central, conselheiro da Casa do Povo, EngD, CNTU e Aguaviva, membro da direção estadual paulista do Partido Comunista do Brasil. Foi presidente regional e diretor nacional do Sinal. Nascido no Bom Retiro, São Paulo, mora em Santos.

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