
Paulo Nogueira Batista Junior*
Já disse e repito hoje: não sou um sonhador. Cético de temperamento, parece-me até meio ridícula, ligeiramente demagógica e sentimental, a frequente referência a sonhos e à necessidade de sonhar. E, no entanto, …
Manoel Bomfim, um dos grandes pensadores brasileiros (injustamente esquecido como são muitos grandes brasileiros – enquanto, diga-se de passagem, não poucos trastes e mediocridades são celebrados intensamente), dizia que uma nação precisa inventar os seus próprios sonhos, sonhar os seus sonhos plausíveis.
Sonhos plausíveis – inspirados de alguma forma, ainda que tênue ou não tão evidente, na realidade histórica e atual da nação. Temos de sonhar nossos sonhos, sonhados por nós, cultivar nossas próprias imagens, nossas próprias noções de beleza, verdade e valor, dizia ele por outras palavras.
Bonito. Mas aí é que se abre o alçapão. Sonhos podem ser perigosos. Certo tipo de sonho, justamente os plausíveis que desejava Bomfim. O sonho possível carrega em si a possibilidade da decepção e do sofrimento.
E, por essa via, chego ao verdadeiro assunto desta pequena crônica – um outro gênio da nossa raça, este verdadeiramente monumental. Refiro-me, leitor, ao grande, imenso, gigantesco Fernando Pessoa. A poesia, como sabemos, resiste tenazmente à tradução. Se Pessoa tivesse escrito em francês ou inglês (até escreveu nesta última língua, mas pouco), seria conhecido e venerado no planeta inteiro. Ele deixa na poeira, a meu ver, muitos luminares da literatura francesa ou anglo-americana. Quantos deles parecem realmente minúsculos ao lado do poeta português!
Não só por sua poesia, que é fulgurante, mas também por sua prosa. E dela retiro uma observação acurada sobre dois tipos de sonhos. Vamos passar a palavra a ele diretamente. Diz Pessoa, ou o heterônimo Bernardo Soares, no Livro do Desassossego: “Tenho mais pena dos que sonham o provável, o legítimo, e o próximo, do que dos que devaneiam sobre o longínquo e o estranho. Os que sonham grandemente, ou são doidos e acreditam no que sonham e são felizes, ou são devaneadores simples, para quem o devaneio é a música da alma, que os embala sem lhes dizer nada. Mas o que sonha o possível tem a possibilidade real da verdadeira desilusão. Não me pode pesar muito o ter deixado de ser imperador romano, mas pode doer-me o nunca ter sequer falado à costureira que, cerca das nove horas, volta sempre à esquina da direita. O sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva dele, mas o sonho que nos promete o possível intromete-se com a própria vida e delega nela sua solução. Um vive exclusivo e independente; o outro, submisso das contingências do que acontece”.
Maravilhoso, não? A relação ambivalente com o sonho permeia a sua obra, também a poética. Por exemplo, no lindo poema Manhã dos Outros!, que sei de cor: “Manhã dos outros! Ó sol que dás confiança/ Só a quem já confia! / É só à dormente, e não à morta esperança/ Que acorda o teu dia.”
E aí vem o verso cintilante: “A quem sonha de dia e sonha de noite, sabendo/ Todo sonho vão, / Mas sonha sempre, só para sentir-se vivendo e a ter coração. / A esses raias sem o dia que trazes, ou somente/ Como alguém que vem/ Pela rua, invisível ao nosso olhar consciente, / Por não ser-nos ninguém.”
Vê-se, claro, que a morta esperança não está tão morta assim. E que continua sonhando de dia e de noite, sonhando sempre, mesmo declarando todo sonho vão, por saber que a vida e o coração deixam de existir propriamente sem a capacidade de sonhar.
Já estou resvalando para uma defesa meio ingênua do sonho. Na verdade, o mais interessante, tanto no texto como no poema de Pessoa, é o embate, dentro da mesma alma, entre o impulso de sonhar e a resistência a ele. Ou em outros termos, talvez mais precisos: o conflito entre a vontade de sonhar e a incapacidade de fazê-lo plenamente, com o coração inteiro. A sua obra está eivada de hesitações desse tipo, sempre muito carregadas de conotações emotivas.
Como não compartilhar essa ambivalência? Os sonhos plausíveis de Bomfim são fontes de equívocos, desastres e decepções. Mas sem eles o que sobra da vida? Ela não se esvazia? Sonhar não pede coragem? E o ceticismo pode ser, no fundo, sintoma de perda de vitalidade. Talvez uma forma de covardia. E, assim, continuamos. Mesmo sabendo ou proclamando todo sonho vão, vamos sonhando, de dia e de noite, sonhando sempre, para sentirmo-nos vivendo e a ter coração.

*Paulo Nogueira Batista Junior é economista e foi diretor do FMI e presidente do banco dos BRICS; crônica publicada originalmente na Carta Capital de 14.7.2021.